domingo, 2 de dezembro de 2012

La dolce morte


Nos antigos métodos de obstetrícia, ao realizar o parto de um bebê, o médico devia lhe dar uma palmada para provocar o choro da criança e assim “abrir os pulmões”. E assim ela começava a viver e já aprender a respirar sozinha, fora do útero materno. E assim também seu organismo tem os primeiros contatos com o oxigênio, produzindo radicais livres e oxidando suas células. É a morte que começa a agir silenciosamente naquele ser desde o seu primeiro contato com o mundo.
A consciência deste processo, para o filósofo alemão Martin Heidegger (1889 – 1976) é o que distingue o homem do animal. A angústia da morte nos moveria em nossas grandes realizações e conquistas humanas. Precisamos, de alguma forma, registrar nossa passagem por esta vida e por isso criamos. A arquitetura, as artes, a literatura, nossa busca por um “outro” e a procriação da espécie fazem parte de nossa busca desesperada para burlar a morte e fugir do inferno da inexistência, do esquecimento e da solidão.
Um século depois de Heidegger, nossa busca foi longe demais. Hoje é possível estender a vida até as últimas consequências com o uso de drogas e tecnologia. Independentemente da vontade do indivíduo, a UTI está sempre pronta para mantê-lo vivo. O inferno de ser esquecido se inverte. Para muitos, o inferno tem sido não ser esquecido.

As UTIs
Durante a Guerra do Vietnã, os Estados Unidos assistiram a uma de suas piores derrotas. As mortes eram transmitidas em tempo real pela televisão e a população começava a cobrar resultados ou o fim da guerra. Foram cerca de 58 mil soldados mortos e era preciso diminuir as estatísticas de baixas na guerra.
A solução foi financiar pesquisas em tecnologias que pudessem estender a vida dos soldados feridos na guerra. Aviões foram equipados com equipamentos capazes de preservar a vida por tempo indeterminado, permitindo manter os oficiais vivos durante toda a viagem de volta para o território americano, onde ou morriam, ou ficavam com sequelas para toda a vida. “A regra era: se a cabeça não estiver separada do corpo, está vivo. Então pegavam os soldados, os colocavam dentro do avião e os ligavam nos equipamentos de UTI por tempo suficiente para chegar no Havaí e estar em território americano. Assim, eles não eram contabilizados como mortos de guerra”, explica David Braga, Médico especializado em Clínica Médica pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP/HC-USP).
As consequências não foram das melhores. Estima-se que a população de veteranos de Guerra dos Estados Unidos seja de 850 mil pessoas, muitos ainda dependentes de medicação e aparelhos, e com doenças crônicas ou problemas emocionais, segundo dados do The National Vietnam Veterans Foundation (Fundação Nacional dos Vetranos do Vietnã)
Os custos do modelo médico inaugurado com as UTIs não param por aí. Adotadas em todo o mundo, as UTIs são extremamente onerosas. O custo médio da diária de uma UTI fica entre R$ 1.100 em um hospital público, podendo chegar a quase R$ 2 mil em um hospital particular. Segundo David Braga, trata-se de um modelo que atende a interesses bem específicos. “Este pensamento aprofunda muito a ideia tecnológica e atende a uma necessidade financeira e comercial muito forte, que é o custo dessa tecnologia e a comercialização desses equipamentos”, explica.
Em países como o Brasil, onde a população idosa vem crescendo – e deve triplicar nos próximos quarenta anos de acordo com um relatório do Banco Mundial –, o uso indiscriminado das UTIs tem levado a um aumento exponencial dos gastos com internações. Dados do Ministério da Saúde mostram que em 1996 o Sistema Único de Saúde tinha um orçamento de 58,7 milhões com internações só para o Estado de São Paulo. Já em 2007 o orçamento era de 1,9 bilhões. O tamanho o investimento contrasta com o 38º lugar que país ocupa no ranking de qualidade de morte organizado pela revista britânica The Economist.

Síndrome de super homem
Apesar dos interesses comerciais da UTI serem reconhecidos, o mais difícil é convencer a população do contrário. Para a pesquisadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, Ingrid Esslinger, as pessoas querem viver muito e com qualidade. É um desejo que parece natural, mas que alerta para uma cultura na qual não se atenta para a finitude da vida. “Na forma como a atual sociedade está construída e historicamente o que se faz hoje com a morte – ou seja, como uma inimiga a ser vencida, combatida, a eterna juventude como meta – a ideia de morte, quando muito presente, pode trazer pânico e quando muito desestruturar”, explica a psicoterapeuta.
Para realizar seu doutorado, Ingrid conviveu com pacientes em estado terminal do Hospital Universitário da USP e viu vários casos de prolongamento indefinido da vida. O que mais lhe chamou a atenção foi uma paciente extremamente idosa, com diversas feridas de agulha e com todos os familiares ao seu redor, rezando por sua recuperação. Como parte de sua pesquisa, Ingrid foi falar com os familiares daquela paciente. “Conversando, ficou claro que, de fato, eles estavam desesperados para que aquela senhora idosa não morresse porque a fantasia que existia era de que, se ela morresse, a família iria acabar”, conta.
A conversa entre terapeuta e família levou à conclusão, por parte dos familiares, de que eles estavam apenas prolongando o sofrimento da matriarca. A partir daquele momento, foi trabalhada, psicologicamente, a aceitação pelos filhos da morte da mãe. “Eu trabalhei com eles um fenômeno cientificamente comprovado, que é a autorização para a partida. Enquanto a família não dá essa autorização, o moribundo não morre”. Dois dias depois, aquela paciente morreu.
Ingrid lembra que o principal motivo para essa relutância em morrer e deixar morrer está em processos mal resolvidos. “Quanto mais raiva e quanto menos consciência dos aspectos não resolvidos do relacionamento com a pessoa que está morrendo, maior a dificuldade de aceitar o desligamento porque eu vou tentar segurar até conseguir resolvê-lo”.
Para o médico David Braga, essa postura pode gerar graves consequências. “É uma ideia narcisista de que eu, indivíduo, tenho que viver o máximo de tempo e custe o que custar. Mas o custe o que custar pode custar a vida de uma criança que não tem vacina enquanto você está na UTI recebendo respiração artificial sem chances de sobrevivência”. Ele lembra que a UTI pode até manter um paciente vivo como o oposto à morte, mas ressalta: “estar vivo é muito mais do que estar com o coração batendo”.

Eutanásia, Distanásia e Ortotanásia
Este é o caso de Ricardo, de 26 anos. Ele está há seis anos internado no setor de tratamento semi-intensivo de um hospital particular da zona sul de São Paulo por vontade da sua mãe. Vítima de um acidente de carro quando chegava em casa após uma festa, ele teve fortes fraturas no crânio e entrou em coma. Quem chega para visitá-lo vê um rosto sereno de quem dorme. Dorme, mas nunca vai acordar. A respiração é totalmente dependente de aparelhos e a única visita que ele recebe é de sua mãe. Ela entra, vela o filho, reza e vai embora na esperança de que um dia ele acorde – ou até mesmo que seja diagnosticado uma morte cerebral.
De acordo com a legislação brasileira, a eutanásia é proibida e o médico é obrigado a tentar todos os recursos antes de interromper o tratamento de um paciente. Até 2010, mesmo que o paciente quisesse interromper o tratamento, o Código de ética médica obrigava o profissional a mantê-lo vivo até os últimos dias. A mudança, após 22 anos (o código anterior era de 1988), introduziu a autonomia do paciente terminal em continuar ou não um tratamento, podendo, por conta própria, adotar a ortotanásia. Ricardo, infelizmente, sofreu o acidente antes destas mudanças e sua mãe não pensa em desligá-lo.
Ortotanásia vem do grego “orto” (correto) “thanatos” morte. É a morte na hora certa, sem estendê-la ou abreviá-la. Neste processo, ao contrário da eutanásia, quando o paciente abrevia seu sofrimento e interrompe a vida, são interrompidas apenas as infinitas tentativas de salvar a vida do doente crônico ou terminal. No caso de Ricardo, a ortotanásia jamais impregaria o uso de um respirador 100% automático. Se o corpo humano não consegue mais respirar, considera-se que é chegada a hora. Ele receberia os cuidados necessários até o momento em que não conseguisse mais respirar sozinho e, só então, morreria.
O contrário da ortotanásia é a distanásia. Nela a vida é estendida indefinidamente com todos os recursos possíveis. O intuito é manter o paciente vivo a qualquer custo para tentar salvá-lo, mesmo que essa solução ainda não seja conhecida. À exceção da eutanásia, os dois procedimentos são reconhecidos e praticados no Brasil. No exterior, a Holanda foi o primeiro país a legalizar a eutanásia em 2002, inocentando o médico que seguir critérios previstos em lei. Desde então, a questão tem sido discutida pela comunidade médica mundial, mas dez anos depois, a eutanásia, e até mesmo a ortotanásia, pouco avançou fora do continente europeu. “Do ponto de vista clínico, o médico tem todos os parâmetros para decidir se vale a pena investir e até onde investir naquele paciente sem incorrer na distanásia, mas ao mesmo tempo eles têm muito receio, legalmente falando, de que a família entre com um processo dizendo que ele não fez tudo o que estava ao seu alcance, mesmo que isso signifique ficar noventa dias em uma UTI”, explica a doutora em psicologia da morte Ingrid Esslinger.

A vida no hospital
O medo destes profissionais tem fundamento se for levado em consideração a formação na área da saúde. Desde a reforma do ensino da medicina, em 1910, com a publicação do relatório Flexner nos Estados Unidos, a medicina passou a ser considerada puramente científica. Antes disso, escolas baseadas nos conceitos bioterapêuticos e homeopáticos conviviam junto com escolas ortodoxas. Não havia regulamentação. O que Abraham Flexner (1866 – 1959) fez foi padronizar o ensino da medicina a partir de conceitos técnico-científicos, onde o social e a comunidade não contam no ensino médico e não são considerados no processo de recuperação do paciente.
Neste novo conceito, a tecnologia, tanto de diagnóstico quanto de tratamento, são consideradas fundamentais. O médico David Braga critica o modelo que persiste até os dias atuais. “A área de atenção ao doente passa a ser desvalorizada. O médico substitui o trabalho manual, artesanal e social de pensar, de medir, de cheirar, por um técnico”. A psicoterapeuta Ingrid Esslinger concorda e acredita que, além da formação, faltam cuidados com estes profissionais. “A classe que mais comete suicídio hoje é a classe médica. Por que será? Com o avanço tecnológico o médico vai cada vez mais brincando de Deus, ultrapassando todos os limites e, quando o paciente morre, pensa ‘nossa, eu fracassei’. A morte não é um fracasso, ela é decorrência da vida. Se eu entendo a morte como um fracasso profissionalmente, eu vou adoecer.”
Foi justamente essa segmentação e tecnicidade que levou a nutricionista Giuliana Salatino a questionar se estava ou não na profissão certa. Formada há seis anos, foi quando ainda era estagiária em um grande hospital de São Paulo que ela viveu sua maior decepção. Um paciente que havia acabado de ser internado não possuía dentes e precisaria de uma alimentação pastosa, diferente das que os outros que estavam internados no mesmo setor comeriam. “Quando avisei que ele precisaria de uma dieta diferenciada, ouvi que o médico precisaria examiná-lo primeiro para depois ser passada a dieta. Era algo óbvio, eu estava diante do paciente e vi que ele não tinha os dentes. E ele teria que esperar uma autorização do médico responsável para poder ter uma dieta adequada? Aquilo me frustrou.”
Hoje Giuliana não pensa em mudar de profissão e trabalha mais preocupada com o cuidado do que com a técnica em si. “Recentemente uma paciente estava com vontade de tomar cerveja. Nós fizemos uma cardápio com cerveja sem álcool e, se não fosse a medicação, a gente teria dado com álcool mesmo”, conta a nutricionista. Isso só foi possível porque o Hospital Premier, onde ela trabalha, é baseado em cuidados paliativos, conceito definido pela Organização Mundial da Saúde como tratamentos que melhoram a qualidade de vida do paciente com doença crônica ou em estado terminal. “Se aquele paciente já está nos seus últimos dias , não é a proibição de um alimento ou outro que vai salvá-lo. Tem determinadas proibições que não fazem sentido. Se tinha algo a ser evitado era antes, quando ainda se podia fazer alguma coisa”, explica Giuliana. Assim, em conversa com os outros profissionais e monitorando constantemente as condições de saúde do paciente, sempre que possível ela libera um ou outro capricho para quem vê um bombom como uma grande aventura.
A ideia é trazer uma morte digna ao paciente para que ele usufrua de qualidade de vida até seus últimos momentos, superando detalhes que vão desde a recuperação do movimento de um dedo até a possibilidade de respirar sem a ajuda de aparelhos. Essas superações e esperas são relatadas a seguir. Os pacientes tiveram seus nomes trocados a fim de preservar suas identidades.

Algumas histórias
O tradutor
Chegamos no quarto para falar com o sr. Paulo, um senhor de 74 anos e bem introspectivo.  Para o meu espanto, dentre todos os pacientes que conversei, foi o único que estava em pé. E se locomovia sozinho. Era rápido, ágil e sob as advertências da cuidadora sentou-se habilidosamente espantando a mim, que a cada movimento tomava um estranho cuidado como se tudo fosse frágil e delicado naquele lugar.
Paulo foi funcionário do Banco do Brasil, tradutor, formado em direito pelo Largo São Francisco e Mestre em Direito do Trabalho pela mesma universidade. Fluente em inglês, costuma traduzir os dizeres que uma ou outra visita traz na roupa. Embora não faça o mesmo com o público do sexo masculino, assegura que não se trata de cantadas. A afinidade maior com a fisioterapeuta mulher em detrimento da cara amarrada com o outro terapeuta (um homem negro, alto e forte) “aconteceu”, como ele mesmo define.
Aliás, “aconteceu” é a definição para muita coisa guardada junto com Paulo. Casado duas vezes após ter sido abandonado pela primeira mulher, o seu segundo casamento, consumado já em tempo senil, “aconteceu” e dura até os dias atuais.
Na fala, Paulo ostenta o cansaço. Guarda mágoas dos primeiros contatos com o ambiente hospitalar. “Foi lá [no antigo hospital] que peguei diabetes”, alerta logo de início de conversa. Segundo Paulo, eles não cuidavam direito da sua dieta. Já para sua cuidadora o motivo foi o sr Paulo ter parado de trabalhar que o colocou naquela situação. Em conversa paralela no mesmo quarto, ela contava com o conhecimento de quem convive com aquele idoso desde o início da doença. “Foi parar de trabalhar que piorou”.
No novo hospital, Paulo não quer conversa com os outros pacientes. Diz não participar muito das atividades, prefere a conversa com a equipe médica e a companhia de seu televisor. A sua principal saudade parece ser o trabalho. O assunto aparece constantemente na conversa lacônica com Paulo. Pergunto do que mais sente falta e a resposta é curta e soa óbvia. “Traduzir..”. Mas hoje já não dá mais para traduzir. “Faz muito tempo. Hoje é diferente”, crtica o experiente veterano do serviço público sem saber especificar a diferença da nova geração.
Embora tivéssemos tempo, ele tentou todo a todo custo se livrar daquele momento. Se mostrava apressado. Sentado na cadeira, respondia sempre o necessário sem se aprofundar em possibilidades. Quando diz que não tem muito papo com os colegas de hospital é como se dissesse para mim que não tem papo, inclusive, para aquele momento. Era como se sempre algo o esperasse ali do lado. A minha pressa natural de paulistano diluída a cada vez que atravessava aqueles portões para uma realidade diferente refletia na inquetação de Paulo.
Bastou que eu dissesse a frase mágica “acho que é isso” para que ele levantasse de prontidão. Como um lord estendeu a mão para se despedir cordialmente da sua visita importuna que tentou a todo momento tirar-lhe detalhes de sua vida e com pressa voltou para o seu cotidiano. Fechando os olhos não seria difícil imaginar uma escrivaninha no lugar do leito e enxergar dentro daquele paciente ainda um tradutor que retomava o trabalho, que mantinha o mesmo passo e o mesmo ritmo preso a uma nova realidade. E eu, que sempre tive pressa, naquele final de tarde caminhei.

A vida
Teresinha estava deitada e assistia mais um daqueles reprises de novela da tarde. No quarto abafado, ela sentia frio e se cobria até a cabeça. Peço licença para uma conversa. Sou recebido com muito carinho. Teresinha está confusa e sua filha me conta que ela não está muito bem.
A entrevista, que insisto em tratar como conversa com todos os pacientes, começa como todas as outras.
- Do que a senhora mais gosta aqui no hospital?
- De viver.
Virou para o lado e dormiu.

Conversa com Deus
Mãe de duas meninas, uma de oito anos e outra de onze, Ana teve um câncer na cabeça e perdeu o controle da traqueia. Parte de tudo que ingere pode acabar caindo nos pulmões. Por isso, Ana se alimenta por sonda e perdeu a fala.
Apesar disso, se mostrava uma mulher empolgada. Estava agitada. Em dois dias, no domingo de dia das mães, teria alta e voltaria para casa, onde seguiria com o tratamento em home care. A saudade de casa a angustia, e sem cerimônia diante dos funcionários do hospital, ela deixa claro que não suporta estar ali. Quer voltar a ter contato com a família, com as filhas.
Além do lado afetivo, Ana também sente falta de pequenas coisas cotidianas. A sonda alimenta, mas não supre instintos humanos. O simples ato de engolir, de beber água, não são mais permitidos a Ana. “É uma tortura ver a garrafa de água em cima da mesa e saber que não posso beber”. A água é inserida por sonda. A equipe médica tenta suprir em partes a vontade de beber água e molha a boca da paciente, mas ela ainda sente falta de engolir, sentir o líquido descer pela garganta.
A conversa se faz por escrito em um caderno já repleto de memórias e coversas mantidas ao longo dos quase seis meses que esteve no hospital. Quando cheguei, ela já estava escrevendo para terminar de preencher o quinto caderno.
Aquelas anotações, ao mesmo tempo que eram compartilhadas a cada pergunta frase, era guardado a sete chaves. Havia um ar de segredo nelas. Inicialmente, Ana entregava o caderno para a assessora de imprensa, que lia a resposta e em seguida me passava. Em pouco tempo começou a entregá-lo para mim que, com cuidado, evitava que alguma acidente bizarro acabasse me colocando em contato com alguma página que não me dissesse respeito. Mas o fato de não poder ter contato não me impede que pergunte o que Ana escreve quando está sozinha, já que escrevia antes mesmo de chegarmos.
Ali, naquelas folhas preenchidas com calma e paciência, Ana escreve sobre si, seus pensamentos, “converso com Deus”, explica. Impedida de externar sua fé pela voz, Ana escreve. Passa tardes, noites, madrugadas registrando o aprendizado de uma nova vida, suas superações.

Mesa de bar
Na parede as fotos ostentam um passado boêmio. Os copos de cerveja e o cigarro ao melhor estilo hollywoodiano estão presentes na grande maioria das ocasiões e dão charme a um homem já maduro, para o qual a idade insiste em chegar. Em algumas delas, a doença parece já querer lhe tirar os prazeres da vida, mas as situações de diversão e a tradicional feijoada permanecem, assim como a família e amigos reunidos.
Hoje, os exageros não são mais permitidos. Com 76 anos e sofrendo de doenças neurológicas, Dario se contenta com os comentários sobre a beleza das enfermeiras e terapeutas ocupacionais. Assim como Sr. Pedro, ele odeia o fisioterapeuta homem do hospital. Basta que ele comece a atendê-lo para que as recusas na hora da fisioterapia comecem. O lado mulherengo de Dario permanece forte, vivo. Basta perguntar para ele o que lhe falta no hospital que a resposta, ainda que debilitada, é clara e objetiva: mulher. Dinheiro e mulher.
Durante sua juventude foram muitas, com tempo suficiente para dois casamentos. O primeiro terminou por motivos óbvios. Pelo menos é com esse ar que Dário conta. “Ela queria controlar minha vida, queria me mudar.. na minha vida mando eu!”. Já acima dos 50 anos, Dário se casou pela segunda vez e assim permaneceu até o momento em que os dois adoeceram. Sua mulher não aguentou. Dário ficou.
E de onde surgiu tempo para tanta mulher? Ele garante que todas as vezes em que esteve com uma mulher foi fiel, mas basta restarem apenas homens no quarto para que se sinta à vontade para comentar sobre qualquer mulher do hospital. É um gentleman. Respeitoso, evita assuntos baixos na presença de visitas, sobretudo do sexo feminino. Mas não deixa de elogiá-las quando estão a sós.
Certa vez, uma das enfermeiras, novata, foi agraciada com seus elogios. “Gostosa!”. Ela não entendeu. A fala de Dario é extremamente debilitada. “O que ele está falando?”, questionava para Claudio, o filho de coração. Mas filho que é filho não dedura pai. “Nada!”. Naquele dia Dario teve que esperar para ter sua traqueostomia fechada. Caso o contrário, o processo aumentaria a compreensão da novata e a assustaria com os elogios apaixonados do paciente.
O clima com ele é de mesa de bar. Não tem bebidas, mas o assunto é constante. Vendo as fotos do passado, cheguei a pensar que Dario fosse um grande apreciador de vinhos, mas engano meu. Pinga – e das baratas – era o principal drinque das feijoadas preparadas por ele mesmo. Se sobrava? Era o que tinha! Na verdade, parece que as pessoas iam mais pela presença de espírito daquele homem que me arrancava gargalhadas mesmo com muito esforço para formar uma frase completa do que pela qualidade do cozinheiro.
E Dario considera que aproveitou o quanto pôde. A bebida, o cigarro, a alimentação calórica, tudo isso pode ter colaborado para o quadro mais delicado no fim da vida. Mas que graça teria a vida sem tudo isso. Se Dário faria de novo? Com suas limitações, ele balança a cabeça com a certeza e confiança de repetir cada erro e cada acerto que levaria qualquer cristão a frequentar um bar.
“Antes era diferente, agora é diferente”
Rita, hoje com 59 anos, foi uma jovem ativa. Amante dos esportes, praticava vôlei como hobby  e começou o curso de educação física como profissão. nunca chegou a lecionar e sempre trabalhou na parte administrativa do ensino. No entanto, a burocracia não conseguia conquistá-la com o sedentarismo.
Quando cheguei, Rita assistia à novela. Pergunto de qual novela mais gosta e quais acompanha. “Todas…”, responde com resignação. Internada há um ano, ela sofre de esclerose lateral amiotrófica. Silenciosa, a doença atinge o sistema nervoso e impede a comunicação com as partes periféricas do corpo, comprometendo a mobilidade do indivíduo. Tudo começa de forma banal. “Senti um formigamento muito forte no braço esquerdo e decidi ir ao médico.”
Aos 26 anos e muito perto de concluir a faculdade, o diagnóstico foi um tiro em Rita. A dor de saber que perderia os movimentos  foi seguida de um longo processo de aprendizagem sobre seus novos desafios e limites a serem superados. No início, ainda saía para a rua, ainda que com dificuldades. Logo veio a cadeira de rodas. A sensação de ter que incomodar os outros para poder se locomover a fez optar pela vida sedentária.
Há um ano Rita está no Hospital Premier. Na parede, fotos em molduras feitas por ela exibem a família, amigos e principalmente o pai. O homem frágil, de quase noventa anos, é uma rocha, uma fortaleza que sustenta aquela mulher que passa tanta força ao ponto de qualquer um se tornar pequeno. “Ele sempre me disse para ter pensamentos bons”, explica Rita. E é com estes pensamentos que ela busca forças pra viver. Se chega algum pensamento ruim, ela não aceita. Logo afasta. Volta a pensar em coisas boas.
No decorrer da conversa, a cuidadora denuncia a paciente. Para ela, o um ano de Rita internada no Hospital a ensinou a ser mais compreensiva e menos marrenta. “Em casa, eu tinha que esquentar o café com o tempo contado exato. Ela parecia que adivinhava quando eu colocava menos ou mais tempo e recusava o café”. Rita nega e se defende. Faz cara de incrédula para descredenciar a testemunha de longa data.
A situação é mais comum do que se imagina. Depois de anos cuidando de uma pessoa (só a relação de Rita com sua enfermeira já passa de cinco anos), estes profissionais parecem sair da condição de “cuidadores” para tornarem-se cúmplices, amigos, irmãos.. até assumirem a forma de anjos e, assim, poderem denunciar a evolução e os erros do passado com naturalidade. Não raramente, respondem com conhecimento de causa no lugar do paciente.
E para o meu espanto, Rita concorda com a companheira de trajetória sobre estar melhor no hospital. “Aqui me sinto viva. Fiz muitos amigos, são todos muito bons…”. A afirmação parece controversa, mas é a mais pura verdade. Se sente falta do passado? Claro que sente. Mas Rita considera que aproveitou o quanto pôde. Hoje, dá muito mais valor a tudo o que fez enquanto tinha toda a sua mobilidade, mas como ela mesmo define, “antes era diferente, agora… agora já é diferente”. E a vida é assim, a cada segundo um pouco mais diferente que o anterior.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

"Posso não concordar com uma palavra sua, mas lutarei até à morte para que tenha o direito de dizê-las" - Voltaire.